segunda-feira, 14 de agosto de 2023

BARBIE, BINARISMO DE GÊNERO E CINISMO

Imagem: Warner Bros. Pictures.

Assisti Barbie e não gostei. Me senti estranho porque todas as críticas que eu vi, antes e depois de ir ao cinema, foram positivas. Debatendo sobre isso com algumas amigas que gostaram muito do longa, enumerei os pontos que haviam me incomodado. Nenhum deles foi aceito como válido, e, na discussão que se seguiu, uma delas foi tão desrespeitosa que, literalmente, isso fez com que a nossa amizade acabasse ali. Então, assisti o filme de novo, observando com mais calma tudo o que me incomodou.

Barbie me lembra o feminismo liberal: hétero, cis, branco e de classe média. O filme trabalha com um sistema de cotas para emular diversidade: tem uma Barbie cadeirante que mal aparece, uma Barbie gorda, uma Barbie trans e um pequeno número de Barbies não brancas. A Barbie Presidente, inclusive, é preta: uma ótima forma de emular um lugar de destaque para uma dessas minorias. Mas as problematizações e discursos são, na verdade, muito pouco diversos: não se toca em nenhum problema relacionado à interseccionalidade, tomando a categoria mulher como única.

No entanto, até aí, acredito que, talvez, esse perfil possa ser visto mais como uma limitação do que propriamente como um "defeito". Talvez essa simplificação seja útil para tornar o discurso do filme mais contundente e coeso. Ademais, nenhum produto midiático consegue dar conta de tudo. Na verdade, essa não foi nem uma característica que se destacou para mim da primeira vez que vi o filme (e discuti sobre ele com minhas amigas). Foi algo que percebi melhor depois de um comentário da minha psicóloga, que é negra e lésbica. O que se destacou desde o início para mim como um problema efetivo foi o binarismo de gênero.

O filme naturaliza as relações de gênero. Para ele, as meninas têm uma ligação intrínseca com as bonecas, e só elas brincam de Barbie. Barbies e Kens simulam as categorias mulheres e homens de forma completamente distinta e oposicional. Independentemente da profissão, as Barbies são superfemininas. Já os Kens, apesar da emasculação ligada à ausência de poder e das roupas cor-de-rosa, são, na sua manifestação de gênero, ligados à masculinidade padrão. Além disso, claro, o desejo é sempre naturalmente voltado para o outro gênero.

É necessário apontar, no entanto, alguns esforços de representação da comunidade queer, através de personagens como a Barbie Estranha, o Ken Sugar Daddy e o Ken do Brinco Mágico (caricatos, ridicularizados e com uma aparição brevíssima) e, de forma mais sutil, o Allan.

No final, a Barbie Presidente reconhece que há preconceito contra a Barbie Estranha, e ela passa a ser tolerada. No entanto, essas figuras aparecem como exceções à norma sem colocar em risco sua hegemonia. Todas as demais Barbies e Kens continuam normativos e contando com 99% do destaque e tempo de tela que torna esse o modelo pelo qual o filme é quase que inteiramente marcado.

No entanto, é limitado o que se pode esperar de um filme sobre bonecas que são bastante binárias. Maquiagens, jóias, cabelos longos e saltos altos para as Barbies. Cara limpa, ausência de adereços, cabelos curtos e sapatos baixos para os Kens. Como o filme poderia representá-los diferentemente de forma coerente? Talvez tratando as exceções com mais destaque e menos deboche.

Além de cisheteronormativo, o filme é bastante cínico quanto à relação que se estabelece entre a Barbie e as meninas no mundo real. A única parte que encara esse problema é a primeira cena da personagem Sasha, na qual ela enumera as influências negativas que a boneca gera. No entanto, esse discurso é apresentado como o de uma menina chata que gosta de "reclamar no Twitter", sendo, por isso, deslegitimado.

O filme assume que a Barbie não é capaz de empoderar as mulheres no mundo real. Independentemente do poder dessas bonecas, o mundo continua sendo comandado por homens. Inclusive, todos os diretores da Mattel são homens, numa forma de "rir" de si mesma. No entanto, se as Barbies são livres do patriarcado na Barbilândia, nada muda no que diz respeito ao mundo real. No fim, a personagem Gloria propõe uma "Barbie Normal", como uma resposta simulada à pressão que as mulheres sofrem no patriarcado.

Mas, ao invés disso, do lado de cá da tela, o que a Mattel lança são as Barbies do filme por R$ 500 cada. A "solução" proposta, além de não existir de fato fora do filme, seria apenas a de uma boneca dentro de uma linha com centenas de outras "Barbies perfeitas". Com isso, a Barbie boneca se exime da sua responsabilidade em relação ao mundo real e ainda ri disso. O cinismo quanto à relação entre a Barbie e o capitalismo, então, é gritante.

No final, os Kens passam por uma transformação, se tornando mais maduros emocionalmente, mas isso não traz proposições de mudanças no mundo real, que seriam esperadas devido à relação entre ele e a Barbilândia. Se o filme considerasse que meninos também podem brincar de boneca, talvez trouxesse.

Imagem: Nando Motta. 

Eu também não gostei de outros pontos do filme. Achei a personagem Sasha mal desenvolvida, mudando de uma postura extremamente ácida para uma conformista de uma cena para outra ao chegar na Barbilândia. Também achei os diretores e funcionários da Mattel perdidos na trama após a fuga da Barbie, tendo sua ida para a Barbilândia praticamente sem nenhuma função no roteiro.

O discurso feminista de Gloria sobre as dificuldades de ser mulher no patriarcado é sensacional (apesar da ausência de interseccionalidade). Essa parte do filme e a que se segue, com as Barbies sendo resgatadas dos Kens, são impecáveis e valem pelo filme todo. Mas isso não significa que não se possa desgostar do filme por outros motivos.

Depois do final da discussão que tive com minhas amigas, da qual falei no início do texto, eu saí com um incômodo que eu não sabia explicar. Não era pelo fato de elas não terem concordado comigo. Era outra coisa que estava me incomodando. Foi só levando para a terapia que eu consegui elaborar. Eu havia escrito com cuidado dez pontos que não tinham me agradado no filme, mas nenhum foi considerado por nenhuma das quatro mulheres envolvidas no debate.

Eu, que já fui professor, sei que é muito difícil um aluno tirar zero numa prova. Para isso, ele não pode saber absolutamente nada sobre o assunto e ainda tem que ter muita má sorte de não conseguir deduzir ou chutar algo corretamente. Mas eu, que tenho certa bagagem em termos de discussões sobre gênero e comunicação, aparentemente, havia escrito apenas dez bobagens. É como se eu tivesse estudado com cuidado para uma prova, mas tirasse zero.

A situação não estava se encaixando, até que percebi: eu era a única pessoa não-binária naquele grupo. Poucas vezes consegui ver tão evidentemente o estabelecimento de uma relação de poder entre mim, enquanto pessoa não-binária, e pessoas binárias. Provavelmente é por isso que todas as críticas que vi sobre o filme também foram sempre positivas.

Imagem: Warner Bros. Pictures.

Obs.: Essa não é uma crítica de cinema, é uma análise sobre representações de gênero em um produto midiático. Não tenho formação em cinema e não estou questionando o potencial técnico do filme.

Postado em 14 de agosto de 2023 e editado pela última vez em 16 de agosto de 2023.